O DIA EM QUE VENCEMOS A MÁFIA
Agosto de 2001
Originalmente publicado na edição digital do Jornal do Commercio (PE)
Recebo uma mensagem eletrônica do meu amigo e excelente colunista deste JC, Carlyle Paes Barreto. Ele me conta as novas e avisa que o JC Online será reformulado. Não ouviu, mas recebeu os parabéns pelo sucesso. Antes da felicitação, mandou bala: escreve algo relembrando qual, pra você, foi o jogo marcante do seu time de coração. Aquele inesquecível, que freqüenta seus sonhos, estejas dormindo ou acordado.
Carlyle, o Cachorrão, me botou para pensar. Meu Deus do céu, quando foi mesmo que meu sangue rubro-negro engrossou e quase me mata de orgulho? Seria o jogo dos 5x2 que Juninho, Chiquinho e Leonardo (antes da cachaça) meteram no São Paulo do mestre Telê? Não, não... Esse jogo foi bom, mas ainda não é ele.
Seria um 2x0 que enfiamos no poderoso Flamengo em 1983 (com Zico, Júnior e cia ltda)? Nesse jogo, o Sport precisava ganhar de três para passar à próxima fase do Brasileirão da época, que, salvo engano, se chamava Taça de Prata. O terceiro gol, o da classificação, foi escandalosamente anulado por José de Assis Aragão – lembram dele? Começou aí, não em 1987, como os mais jovens podem pensar, o ódio que os rubro-negros de boa estirpe nutrem contra o Flamengo.
Ah, lembrei! 1987. O ano da glória. O ano em que ganhamos o Brasileirão. Vou descrever uma tarde mágica. Era novembro, dia 29. Sem chuva, poucas nuvens.
Não tenho prova, mas acho que as nuvens abriram uma fresta para Deus e todos os santos contemplarem lá de cima o exemplo perfeito de coragem e justiça que o Sport patrocinaria cá embaixo.
O jogo era de vida ou morte. Semifinal de um tal Módulo Amarelo _ que é como eles chamaram o grupo B do campeonato, onde botaram todos os times que achavam não dar renda aos grandes clubes.
Do outro lado, o Bangu. O mesmíssimo time que havia perdido o título brasileiro para o Coritiba dois anos antes em pleno Maracanã. Essa informação é importante. Revela que os times grandes, na época, não estavam com essa bola toda. A exceção era o São Paulo, que, comandado por Cilinho, trazia uma safra de jogadores foras de série.
O time do Bangu era bom. Tinha um criminoso fantasiado de zagueiro chamado Márcio Rossini. Pelo meio, um jovem negrinho apelidado de Macula organizava as jogadas. A maior estrela jogava pela ponta-direita, que ainda existia. Chamava-se Marinho, um negro esguio, boa técnica, mau caráter. Chegou à seleção brasileira.
A força do time, contudo, não entrava em campo. Atendia por Castor de Andrade. Bicheiro famoso no futebol e no samba do Rio. Associara-se à Máfia da rua da Alfândega. Era outra máfia _ Ricardo Teixeira chegou depois.
No jogo de ida, em Moça Bonita, o Sport perdeu por 3x2. Um placar heróico. Apenas um gol de diferença contra os onze do Bangu, o juiz, os bandeirinhas e a torcida. Até os capangas de Castor tinham permissão para “bater um bolão”, se preciso dentro de campo. Nesse dia, Homero Lacerda levou um murro na cara. Sangrou e tudo.
Era o clima para o jogo de volta. Arbitragem cuidadosamente escolhida pela CBF (arg!!). O Sul contra o Norte, o grande contra o pequeno, o rico contra o pobre, o bandido contra o virtuoso. Nós querendo desmarcar as cartas deles. Eles querendo massacrar aqueles jecas vestidos de jogadores de futebol.
O time do Sport era bravo. Bravíssimo. Injustiça não terem sido eles os responsáveis pela adoção do leão como símbolo. O goleiro era Flávio, magro, alto, bigodudo, cabelo cumprido atrás, como a moda da época. Sucedera Leão no gol. No ano anterior, Leão chegou a jogar de goleiro e treinador ao mesmo tempo. Em 1987, ficou só no banco. A defesa formava com Betão (também antes da cachaça), Estevam, Marco Antônio e Zé Carlos Macaé. O meio campo tinha tudo para dar errado, mas deu certo: Rogério, Ribamar, Zico e Neco. O ataque tinha Robertinho ressuscitado para o futebol e mais um. Revezavam-se na vaga duas desgraças, Augusto e Nando. Nesse dia jogou Nando.
A Ilha, claro, estava repleta. Para falar a verdade, eu nunca tinha visto tanta gente lá. O jogou começou nervoso. O Bangu batendo como nunca. O Sport apanhando como sempre. O juiz roubando como um condenado.
De repente, Zé Carlos Macaé começou a fazer a diferença. Macaé era um crioulo enorme. Forte feito um touro, vivaz que só um gato. Alto, pernas compridas, corria muito, chutava e cruzava bem. Apoiando mais que de costume, pelo seu lado o Sport fez 1x0.
O gol incendiou a torcida. A torcida incendiou o time. O Sport partiu pra cima. Só que a gatunagem não se assombra facilmente. Numa bola perdida no meio campo, alguém lança a bola para Marinho, descabeladamente impedido na ponta-direita. O bandeira fez que não viu, o juiz se fingiu de morto. O negão empatou. O gol foi um banho de água fria na torcida e, de resto, no próprio time.
Naquele dia, como eu já disse, além dos mais de trinta mil benfeitores que foram ao estádio, uma platéia divina acompanhava à partida. Quando o resto do time fraquejou, Macaé recebeu um raio salvador e jogou o futebol de toda a sua vida naquela única tarde. O Sport ganhou por 3x1. O último gol foi de Zico, um jogador que... que... bem, não há comentários capaz de descrevê-lo, deixa pra lá.
O resto da história já se sabe. O Sport seguiu no campeonato, ganhou o chamado Módulo Amarelo do Guarani, nos pênaltis, ganhou a semifinal do Brasileiro do Internacional por WxO, voltou a jogar com o Guarani e voltou a vencer. Há quem diga que o verdadeiro campeão daquele ano foi o Flamengo. Bom, também não posso provar nada, mas acho que a sova no Bangu mostrou que não era qualquer armação vinda do Rio de Janeiro que tiraria aquele título do Sport. O fato é que ele, o Mengão, o time da televisão, não nos enfrentou. Problema dele. Só sei que fui na Ilha assistir os jogos da Libertadores de 1988.
José Carlos Macaé, o herói do dia em que derrotamos a Máfia, morreu semanas depois. O coração dele parou. Como eu disse, Macaé jogou todo o futebol de sua vida na tarde do dia 29 de novembro de 1987.