
HOJE FOI FODA
2014 (talvez 2015)
(Publicado originalmente no Facebook)
Hoje, quase fui flechado. Sim, há um éle ali, entre o éfe e o éh. De flecha. De índio, com cocar e tudo. Flechado. Nem sei se existe esse verbo. Mas que fui, fui.
Aconteceu quando eu tentava entrar no prédio do Congresso.
Queria ir ao Senado, mas carrego a mania de sempre entrar pela Câmara. Sei lá, deve ser a boca torta feita do cachimbo à época que eu trabalhava pro Lula na liderança do governo na Câmara. Mas estou divagando.
Quis entrar no Congresso pelo anexo 1, que é aquele prédio alto, bonito, que nas fotos parece um agá e paira, solene, sobre as cúpulas da Câmara e do Senado.
Lá vou eu e me deparo com uma agente da odiosa Polícia Legislativa. Com a porta do prédio entreaberta, só entrava um de cada vez. Ela olhava pro crachá e deixava entrar. A quem não tinha crachá, como eu, ela dizia: — Senhor, hoje, só entra por aqui funcionário da Câmara. E respondia a quem, como eu, lhe perguntava do porquê: — Hoje está programada umas manifestações (assim mesmo, com erro de português). Se o senhor quiser entrar, tem que ser pela chapelaria.
Eu vou poupar seu tempo, meu paciente leitor, e me censuro de descrever as minúcias arquitetônicas da Esplanada dos Ministérios. Basta dizer que pra ir a pé, como eu estava, a chapelaria é um bocadinho longe do anexo 1. E eu, conhecedor dos caminhos parlamentares, andei um pouco menos, arrudiei o prédio e andava pela calçada para ir ao anexo 2, que não é logo ali, mas dá pra encarar, mesmo de blazer, como eu tava.
Neste momento, em que eu via estendida na rua minha sombra magra, pensava no destino e tinha medo (tudo bem, eu tô gordito, mas quem conhece poesia vai entender), passou por mim um índio.
Estava de cocar, um tacape na mão direita e cara de mau. Até ali, ele caminhava com uma certa pressa, mas caminhava. Até que alguém lá atrás gritou alguma coisa que eu não entendi e ele passou a correr, em vez de andar. Atrás dele, passaram também correndo outros tantos índios, de cocar, homens e mulheres vestindo saias de palha sobre o calção surrado. Uns estavam pintados no rosto. Outros seguravam faixas, que não deu pra ler. Muitos tinham arcos e flechas nas mãos.
Caminhando, vinham calados. Mas ao correr, gritavam como nos filmes de faroeste.
Passaram por mim assim, correndo. Deu vontade de correr com eles, só de sacanagem. — Quero ver a cara dos outros brancos aqui na rua vendo um sujeito de calça e blazer a correr e gritar como um índio. Eu me divertia sozinho com esse pensamento. Foi quando os alcancei, a entrada no anexo 2.
Só que no Anexo 2 não era a bosta da Polícia Legislativa quem defendia a porta. Era a PM. Eles foram barrados, como de resto seríamos todos. E não gostaram nem um pouquinho. Começou uma zoada da moléstia, barulho, confusão, gritos.
Veja bem, meu ansioso leitor, quem me conhece sabe que eu sou um sujeito curioso. Não podia ficar ali de longe, tive que me aproximar. Quando caminhava na direção da gréia, saiu um estalo do meio da multidão. Como se uma madeira fina tivesse batido no chão.
Começou a comer bofete entre índios e PMs. Só que os índios se agrupavam pra atacar. Já os PMs, correram um pra cada lado. Parte entrou no prédio, parte saiu pelos flancos e correu pra longe. Era cacetete comendo pra um lado, índio correndo pra outro. Um solitário policial fez o que o treinamento mandava: sacou o spray de pimenta e apertou na cara de um índio. Prestou não.
Eu tava perto, levei uma restinga daquele trem. Pense num troço insuportável. Você fica querendo abrir o olho e sem poder. Entra no nariz que tu não respiras. É uma desordem tamanha que o sujeito quer fugir e não pode. Precisa ficar, mas não consegue.
Mas o problema era outro. Depois da pimenta, os índios enlouqueceram. Olhe, eu vi um bocado de cabra revoltado. Eu ali no meio, com aquela pimenta no toitiço, abro o olho e vejo uma flecha passar voando a minha direita, uns dois metros pra lá. Viro de costas e tomo um susto. Tinha uns quinze índios com arco armado e a flecha na minha direção. — Oxente, mas eu não fiz nada!, pensei.
Foi aí que eu me virei e entendi. O PM que jogou a pimenta tava atrás de mim. Era nele que eles miravam. Pensei rápido: — Vou levar uma flecha perdida. Tenho que correr.
Não vou mentir pra vocês. Estava me cagando de medo. Corri sem vergonha. Fui me esconder atrás de uma pilastra que é bem larga e fica a uns cinco metros do portão de entrada do anexo 2. O destino tem dessas coisas. Eu corri pela esquerda da pilastra e me pus atrás dela. Adivinhem vocês quem correu pela direita para a mesma pilastra? Sim, o tal PM. — Eita porra, vai te fuder, essa pilastra já é minha, eu disse pra ele. Adiantou nada.
Os índios vieram atrás e tanto eu como ele tivemos que sair da pilastra antes mesmo de negociar a propriedade.
Índio é bicho disciplinado. E estavam fissurados no PM. De modo que eu corri pra um lado, o PM pro outro e a indaiada atrás dele. Eu já não corria mais risco.
Com o PM a uns dez metros distante, os índios pararam de persegui-lo e passaram a atirar nele as flechas. O pajé lá do meio gritava “mira nele, mira nele”. Atiraram uma, duas, três, quatro flechas. Uma delas atingiu a perna dele. Que entrou num carro de reportagem, não sei de que emissora. O carro saiu em disparada e os índios voltaram pra frente da porta do anexo 2.
É, o barulho foi feio. Depois as flechas que eles dispararam ficaram por ali, no chão do estacionamento onde o PM virou alvo móvel dos cabras. Uma delas é essa aí da foto. A ponta dela é bem grossa, não é capaz de perfurar a pele. Acho que deve ser uma espécie de flecha de efeito moral. Tinham outras, de ponta bem fininha. Eu não sei qual o tipo da que acertou o PM. Mas torço pra que ele fique bom logo.