CAP 2
A SOBRINHA DA BEATA
-- Era o demônio, essa aí.
-- Cruz credo, Ardósia! Quem já viu... Não sabe que dá até azar falar mal do morto no velório dele? Ainda mais na beira do caixão? Olhando pra cara do defunto? Ou melhor, da defunta?
-- Deixa de ser besta, mulher. Eu sou tia dessa cabrita, sei da história todinha.
-- Que história?
-- Oxente?! E você acha que ela morreu mesmo do coração, foi? Como o povo tá dizendo, o médico confirmando e o padre abençoando? Pois o povo tá enganado, o médico mentindo e o padre blasfemando. Não digo mais nada. Pro teu governo, guarda só o principal: esse povo é muito besta, o médico é safado e o padre não vale nada. E essa aí era um demônio. Se não fosse o próprio chifrudo-chefe que veio atormentar Itapetim.
-- Valei-me Nossa Senhora do Carmo, eu não quero mais conversa contigo não, visse? Se vier visagem, vai pensar que eu tô de chamego nessa fofoca. Vai acabar me assombrando por engano. Olhe, chegou padre Zé, graças a Deus! Assim você pára com a conversa fiada na cabeceira da morta. E exagerando na fala: - Sua bênção, padre Zé?
Aproximando-se, o religioso respondeu calado, fazendo com a mão um Em-nome-do-pai na direção das duas.
Na beira no caixão, voltou ao sinal da cruz, só que para si mesmo. Pôs a mão na mão da morta. Fechou os olhos. Seus lábios mexiam, mas não saia som. As quatro beatas que estavam na sala pensaram que ele estava rezando em silêncio, e parecia estar mesmo.
Ardósia, a tia, foi ter com ele.
-- Sua bênção, seu padre?
-- Deus te abençoe, Ardósia – respondeu, com jeito de enfado, sem abrir os olhos.
-- Vindo aqui na hora do canto do galo, hein? O senhor está muito triste, não é?
Severina, a beata-adjunta, conhecia bem aquele tom. Estudara com Ardósia no internato desde pequena. Seguira-lhe os passos na solteirice, na beatice e na fofocagem. Mas ainda achava que velório era coisa séria. Vendo o jeito com que a matrona abordava o padre, sabia que o que vinha era provocação. Sem explicar, pegou as outras duas arrebanhadas na madrugada para rezar pela defunta e saiu da sala, em direção ao oitão em frente da casa.
-- Estou, Ardósia. Você também deveria estar. Sua sobrinha morreu, se você ainda não se deu conta. Padre Zé desta vez abriu os olhos. E olhou na direção da beata, com o cuidado de não lhe encarar.
-- Sim, mas eu mesma encomendei uma missa pra ela. E o senhor é quem vai rezar, e está quase na hora. Em vez de estar lá na igreja, o senhor está aqui, na casa de quem deve encomendar.
O padre ficou silente.
-- Mas sei bem por quê. Porque para o senhor ela era muito mais do que minha sobrinha, não é padre José Eustáquio?
-- Era Ardósia, era.
-- O que o senhor quer dizer com “era Ardósia, era”?
Ainda sem olhar nos olhos da mulher:
--Quero dizer que ela era muito mais do que sua sobrinha. Que tinha qualidades suficientes para não ser reconhecida apenas como a sobrinha da beata. Aliás, hoje em dia, você é que pode ser apresentada como a tia vitalina de Carminha. E já que estamos de lenga-lenga, como é que vai ser isso, hein? Eu vou rezar a missa lá na igreja, enquanto o corpo fica aqui?
-- É, padre Zé. Qual é o problema?
-- Ardósia... - disse, já em vias de perder a paciência. - O problema, Ardósia, é que nesse caso, eu devo rezar a missa de corpo presente. Ela ainda não foi enterrada, entende? – já recompondo a civilidade.
-- Rá rá rá. Só, seu padre, que eu tenho que pagar vinte tostões pra levar Carminha pra igreja, como o senhor bem sabe. Se eu fizer isso, fico sem dinheiro pra comprar o pão do resto da semana, já que seu Adílson sumiu desde que se teve notícia da morte da minha sobrinha, faz dois dias. Meus sobrinhos, que crio como se fossem filhos, vão comer o quê? Me diga, seu padre. Se o senhor tem que rezar a missa de corpo presente, por que a paróquia não paga pra levar Carminha? Devia pagar. A gente dá dinheiro, dá dinheiro e a igreja é a mesma faz mais de quinze anos, o senhor não pode nem vim com aquela desculpa de dinheiro pra reforma da igreja. Deve ter uns barões essa paróquia, deve ter uns barões.
-- Mulher faladeira! Quem reza tanto devia ser um exemplo. Mas parece um curador de quermesse, com terço na mão e pedra na outra.
-- O senhor fala porque reza umas missas, benze uns defuntos, batiza uns meninos e tem pão e vinho o ano todo. Veio do Recife e pensa que todo mundo aqui é besta, é? A gente é matuto mas não é besta não, visse? Quero saber de papo não, padre Zé. Não pago nem um vintém pra levar Carminha. Se quiser, reza a missa de lá que ela fica de cá, que já fiz demais em encomendar a alma dessa diaba. Morreu em casa porque é miserável. Tivesse morrido na rua a prefeitura mesmo levava pra igreja e de lá já saia pra cova. Faz mal não, todo castigo é pouco. Pra ela, não tem coisa melhor. Fica sem missa de corpo presente. Tem missa, que minha fé e misericórdia são grandes, mas de corpo ausente. Vamos embora, padre Zé, vamos embora. – E puxou o religioso pelo braço, fechando a sala da casa, onde ficaram o caixão e quatro velas, duas acesas e duas apagadas pelo vento que veio quando a porta bateu.
