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CAP 1
MATA!, PELO AMOR DE DEUS!!

-- Mas eu não sou culpado, seu delegado!

-- É inocente, então? 

-- Sou. 

-- Ô infeliz, acabei de tomar teu depoimento. Quem decide se você é culpado ou inocente é o juiz. Assina logo. Tá aqui ó – e jogou quatro folhas de ofício datilografadas na cara do depoente. 

Continuou, impaciente. – A gente tá aqui a madrugada inteira, um calor do inferno, essa bosta de café frio, essa catinga que sobe lá do xadrez, e você fica nesse rame-rame! Fiz, não fiz; sou, não sou; dei, não dei. Nem pra confessar tu serve... Quer saber? Que se lasque! E, junto com as últimas palavras, deu-lhe um tapão no pé do ouvido. – Você vai assinar por bem ou por mal.


Adílson, o depoente, caído no chão pela força da tapa, algemado, suado, barba por fazer, mouco do ouvido direito, notou que ao seu lado, bem pertinho, metro e pouco, tinha uma barata. Cultivava desde menino um especial terror a baratas. Tentou se levantar. Não conseguiu. Primeiro foi um chute na barriga, depois um pisão na nuca. 


A voz do delegado ficou bem pertinho do ouvido, de novo. Como era do esquerdo, deu pra ouvir claramente.


-- Quer se levantar pra quê, seu cabra? Pensa que vai ficar sentadinho na minha delegacia dizendo o que quer e desdizendo o que não quer? 


A barata, até então parada, começou a andar com aquele jeito de barata. Andou um pouquinho. Parou. Mexeu os bigodes. Andou mais um pouquinho. Parou de novo. Mexeu os bigodes. Estava agora a poucos centímetros.


-- Seu delegado, pelo amor de Deus! Foi um murmúrio. Um mexido de choro, tosse e lamento.


-- Ah, agora quer falar... E olhando para o escrivão: - É foda, né Tobias? A gente fica aqui um tempão tratando esses filhos da puta com educação, perguntando e esperando a resposta, como manda o livro. Só que as gracinhas só falam quando começam a apanhar. Parece até que gostam. 


Antes de terminar a ladainha, voltou a chutar o depoente, agora no rosto, no meio do nariz, mas sem muita força.


-- Seu delegado, pelo amor de Deus! 


Dessa vez foi um grito desesperado. Uma súplica, vomitada do fundo da alma. Por causa do chute no nariz, havia dificuldade para pronunciar tal ousadia. Não corria sangue nem nada, mas custara uma insuportável vontade de espirrar. 


Diante da situação, um espirro seria uma afronta maior do que qualquer coisa. Era sinal de desrespeito à tortura, algo que o torturador, qualquer torturador, não suporta. Aquele depoente, meio que por instinto, sabia muito bem disso.


-- Fala, Adílson... Vai assinar o depoimento, né?


O delegado nem terminou a ironia.


-- Pelo amor de Deus, mata essa barata. Por favor, seu delegado, mata essa barata. Ai meu Deus!


A essa altura, Adílson chorava feito criança. Aliás, estava deitado mesmo feito criança. Abraçava as pernas, onde tentava esconder o rosto. Posição fetal, como se diz. Tinha o cuidado de jamais abrir a boca, mesmo aos prantos. Era tomado de horror só de pensar naquele bicho nojento entrando na sua boca. Por isso, cuidava de mantê-la fechada.


-- Tás vendo, Tobias? Só era o que me faltava. “Mata essa barata, mata essa barata.” Vendo o escrivão sorrir, o delegado sentiu-se dono da situação. - O sujeito tem que ser muito cara de pau. Mata essa barata... E levantou o tom de voz: - Mato porra nenhuma, seu Adílson, mato porra nenhuma. É mais fácil eu matar o senhor e deixar essa barata vivinha só pra comer os cornos do seu cadáver. Eu quero mais é que o senhor vá para o raio que o parta. Tem nojo de barata? Tem? Tem nojo de barata? 


A medir pelo humor do delegado, a situação era cada vez pior. O calor parecia ter aumentado. 


Sem conseguir mais prender, Adílson espirrou.


Em toda a história das delegacias brasileiras, jamais se viu uma barata e um espirro tão poderosos. Poderosos no sentido de fazer do delegado um irado e transtornado justiceiro. Talvez até se possa dizer com boa chance de acertar que ele tenha deixado escapar ao mundo a cólera pela esposa, que se negara a ir para o interior e ficara em Recife, morando no apartamento da Boa Vista - ele o havia comprado a muito custo e agora desconfiava servir de alcova para sua própria cornura -, a cólera pelo amigo puxa-saco que hoje era delegado especial, lotado na capital, enquanto ele prendia esses perebas no sertão do Pajeú, a cólera pela derrota do Náutico no dia anterior, a cólera de não ter comido nenhuma das gostosinhas na faculdade de Direito, a cólera de não ter passado no concurso de juiz por não saber falar inglês, a cólera por ser incapaz de realizar sequer 10% do que planejara para si mesmo. Finalmente a cólera por não ser respeitado nem por um matuto miserável, que em vez de temer-lhe as bordoadas da tortura nem bem iniciada tinha medo das baratas e espirrava enquanto apanhava.


De um pisão, o delegado matou a barata. 


-- Tem medo de barata, seu Adílson, tem medo de barata, né? Pois então toma aqui ó! E com os pés empurrava os pedaços do inseto junto com o líquido branco de seu sangue para perto do rosto de Adílson. Agarrando-lhe pelos cabelos da nuca, fez com que parasse de se debater. Até que os restos da barata sujaram-lhe as bochechas e lábios e entraram-lhe narinas adentro.

CAP 1 Mata!, pelo amor de Deus!!: Trabalhos

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