CABEÇA DE TENISTA
março de 2022
Três a um no primeiro set, 30x40, saque dele, break point pra mim já com uma quebra na frente, portanto. O saque vem aberto na minha esquerda, eu devolvo bem, fundo no meio. Ele responde com uma curta no meu backhand. Eu percebo, dou um arranque até a rede, chego bem e fecho o game com um drive paralelo. Só que… no arranque, minha panturrilha, a minha velha panturrilha, acusa uma dor aguda que não me é nenhuma novidade. Vez por outra essa ingrata me deixa na mão.
Dor muscular no meio do jogo!? Enquanto eu volto pra linha de base pra sacar, o pensamento voa insano.
— Se eu forçar, pode arrebentar de vez e eu vou ter que ficar um tempão parado. Sem judô, sem crossfit, sem tênis. Logo eu que desde criança treino regularmente. Sem treino eu fico louco. Fico ansioso, fico impaciente. Melhor parar. Melhor explicar que minha batata já era. Perder o jogo e manter o corpo. Mas entregar?! Entregar o jogo!? Cacete Ugo, você não vai entregar nem a pau! Nem que saia daqui de cadeira de roda, não vai entregar. Nem que caia a perna, você vai lutar até o final. Não dá pra arrancar mesmo, então o jogo tá perdido… dê a ele pelo menos a sua dignidade, perca com hombridade.
Tênis, meu caro leitor, é o uma espécie de tortura mental com regras de esporte.
Meu treinador, seu Jaime, o explica com uma frase frugal: no tênis, você deve usar a raquete para jogar a bola por cima da rede, dentro das linhas, o mais longe possível do adversário. Só isso.
Seu Jaime sempre ri, matreiro, quando manda essa explicação. Porque o que tem de simples em teoria, tem de complicado na prática.
A começar de algo que muito tenista amador por aí nem se dá conta: o tênis é um esporte de altíssima precisão, como o bisturi de um cirurgião.
Jogar a bola pro outro lado, o mais longe possível do adversário, é até certo ponto fácil nos três primeiros games. Só que é neste momento que o corpo passa do aquecimento ao desgaste. Um músculo desgastado atrasa um milissegundo a reagir ao movimento da bola. É o suficiente para que a mínima inclinação da raquete devolva a bolinha mais lenta do que deveria, ou mais para fora ou para dentro, mais baixa ou mais alta a depender da direção que se quer dar.
Ou seja, quanto mais o jogo avança, menos preciso é o tenista. Os profissionais treinam muito e demoram mais para perder a precisão. Os campeões conseguem manter mais tempo que os demais. Os gênios não a perdem, porque a mente é tão forte que segura a onda toda.
No meu caso, a precisão já não é das mais fiéis. Ainda mais com a panturrilha transformada em âncora.
Vou andando devagar pra linha de base, pensando nessas coisas e mais em outras.
— Eu tô mancando, mas não quero mancar. Meu adversário vai ver e vai vir pra cima com tudo. Ou vai ver e já que eu tô ganhando, vai pensar: olha lá, filho da puta, me dando um cacete e ainda finge que tá machucado. Não manca, Ugo, não manca!!
Eu não sei você, leitor querido, mas eu sou daqueles que sua. Ah, mas como! Quando acabo um treino, qualquer que seja ele, parece que tomei banho. Fico totalmente encharcado. No tênis, de vez em quando cai suor da testa nos meus olhos. E eu fico cego, literalmente cego, no meio do ponto. Então, voltando lentamente para sacar e pensando em parar o jogo ali mesmo, decidi ir na toalha, que sempre deixo ali à esquerda, pendurada no poste onde estão os refletores da quadra.
A quadra onde eu jogo é um saibro delicioso que fica na casa de seu Jaime, no condomínio onde eu moro. É exatamente a 640 metros lá de casa. Sim, a quadra tem iluminação, daí o poste onde eu penduro a toalha. Mas quase sempre eu jogo lá de manhã, como nesse dia.
— Rogério (é como chamo Federer, o gênio) uma vez disse que a toalha já ganhou muito jogo pra ele, eu pensei.
Aquela altura, a ideia de abandonar o jogo já era. Agora eu começava a pensar em como terminar a partida (a gente sempre joga só um set e um tie break por aqui) sem machucar ainda mais a batata da perna. Enquanto enxugava o suor, me veio uma luz. Um rasgo. Um inicio de ideia.
— Bom, você tá com a panturrilha fodida, então não pode arrancar, não pode correr pra frente. Deslocar lateralmente até que tá ok. Então se você conseguir jogar mais perto da linha de base, vai devolver mais rápido pro outro lado. E se conseguir jogar angulado, ele vai estar sempre desequilibrado. Ou seja, vai devolver na cruzada, que é a mais segura, no máximo na paralela, mas as curtinhas, se vierem, vão vir lentas e altas. Logo, você não vai precisar correr pra frente. Eita porra ainda dá pra ganhar!!
O tom sombrio com que eu cheguei na toalha, agora era pura esperança. — Dá pra ganhar, dá pra ganhar, dá pra ganhar, caralho!, eu repetia a mim mesmo, dentro da tempestade na minha cabeça.
A tática estava refeita. O jogo agora pra mim tinha que ser mais lento e muito mais angulado. Até abrir uma brecha pra matar o ponto. Seria preciso paciência. E concentração.
Saquei a primeira bola bem aberta na direita dele, com muito slice, o máximo que eu consegui. Sem pretensão de ace. Sem força. Bingo, ele devolveu no meio, fundo, mas perto de onde eu estava. De backhand, joguei no outro lado da quadra, cruzada na esquerda dele. Que correu e bateu desequilibrado, também cruzado. Veio um pouco mais curta, no meu backhand. Insisti na cruzada e joguei sem pretensão de winner na esquerda dele de novo, só que um pouco mais angulada que a anterior. Ele correu, armou a esquerda e meteu a mão na bola pra um winner de paralela. A bola ficou na rede.
Eu só lembrava de seu Jaime: por cima da rede, dentro das linhas…
A tática deu certo. — Dá pra ganhar, dá pra ganhar! Não manca, não manca!
O segundo ponto foi um terror. Porque eu saquei mal. Não consegui angular quase nada. A bola foi lenta demais. Na esquerda, mas lenta. Talvez testando aquelas mancadas, ele respondeu com uma curta. Eu nem fingi que ia correr. Olhei a bola aterrisar lentamente lá nos quadradinhos, pingar uma, duas vezes.
Olhei pro meu adversário. Consegui enxergar o riso que ele disfarçava. Quase pude ouvir ele desvendando o mapa da mina: — Te peguei, Ugo Braga…
15 iguais, quatro a um, saque meu. Meus planos secretos revelados ao inimigo, meu corpo avariado. Lembro que contusão não é o maior inimigo do tenista. O maior inimigo do tenista é a dúvida.
— Será que dá mesmo? Agora ele que vai me fazer correr atrás dessa bola. Agora eu que não vou conseguir bater, eu que tô em apuros, ai ai minha batata, e essa minha esquerda que me deixa na mão. Por que eu não tenho o saque do Isner?
Cheio dessas caraminholas, saco mal de novo. O grande slice do primeiro ponto vira um arremedo nesse. A bola vai certinha, lépida e doce, na direita dele, altura da cintura. Graças a Deus, a dúvida tem uma prima próxima, que também faz mal ao tenista: a desatenção. Tendo descoberto meu segredo e recebendo meu péssimo saque, meu adversário armou o canhão e meteu a mão na bola pra matar o ponto com um winner cruzado. Só que, talvez enebriado pela certeza da vitória, tirou o olho da bola. Em vez do winner, veio a madeirada que jogou a bolinha fora da quadra. 30x15.
— Dá pra ganhar, dá pra ganhar! Não manca, não manca!
E mais uma vez a voz de seu Jaime nos muitos treinos que me deu invadia a minha cabeça: — Mira la pelota, mira la pelota, no tira los ojos de la pelota! Ah, seu Jaime é chileno, esqueci de dizer.
Lembrei da máxima de não tirar os olhos da bola por causa da madeirada que me punha a frente no game. Mas ela serve também para o meu saque. Olhar a bola desde o início, desde o lançamento, até que a raquete bata nela e inicie o ponto é fundamental. Sabendo disso, sempre assisti fascinado ao toss da Sofia Kenin. Mas isso é outra história.
Saquei com muito slice, mas um saque fechado, na direita dele. Que respondeu sem convicção, inside out, na minha esquerda. Pude acelerar com uma paralela de esquerda, que não deu pra ele. 40x15.
— Ah, irmão, se eu fechar esse game, 5x1, não tem pra ninguém, perco esse jogo nem a pau.
Se tem uma coisa que põe tudo a perder, é esse tipo de pensamento. Lembra do que eu falei? Sobre precisão? Pois então, precisão tem a ver com a condição muscular. Mas tem muito mais a ver com a condição mental. É negligenciar o toss, é não olhar pra bola, é esquecer da tática, enfim, é se perder no vão da própria mente. Eu armei um pequeno esquema pra me proteger dessa armadilha.
Antes de sacar, bato a bola no chão pelo menos sete vezes. Enquanto conto, esqueço do que não importa e me concentro: preciso jogar a bola ali, bater a raquete assim, pra que ela vá ali, porque eu quero que ele responda aqui e, bingo!, depois de um rali de umas dez trocas de cruzadas, ele mandou a bola fora. Game meu, 5x1.
Como eu disse, naquele ponto, eu só perderia por milagre. Que não veio. Me mantive fiel à tática. Fechei em 6x1 e agora vou tratar essa contratura que eu não aguento tanta pressão…