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FEIRA ANTIFA

5 nov 2022

Fui à feira sábado pra me curar. Sim, acho que depois desses meses todos em que o país se intoxicou de ódio, tava precisando de uma dose de gente. Da boa gente brasileira. 


Chegamos, eu, Stael e Chicão, na barraca das garrafadas. Olhei pra prateleira e, por trás do vidro, reluzia no melhor lugar do balcão o xarope Taradão. Você há de entender pra que serve, não é meu perspicaz leitor? Ao lado dele, havia o Pega Marido. E mais pro lado ainda, o Pega Esposa. 


Eu ainda me divertia com esses títulos quando Stael levantou o braço e chamou. —Ei, freguês, bom dia!


O vendedor estava lá dentro da barraca, sentado atrás do balcão. Chegamos perto do meio dia, então ele batia um prato de feijão com farinha e charque. Levantou com cara de pouquíssimos amigos. 


— Boa tarde, senhora…


— Olha só, quanto está a castanha? 


A barraca das garrafadas é a mesma que vende um montão de outras coisas. Amendoim, temperos de tudo quanto é tipo, nozes as mais diversas. Havia, atrás do balcão, perto de onde o moço comia, quatro sacos plásticos imensos. Eram transparentes, então dava pra ver que estavam cheios de castanhas de caju. Elas diferiam quanto à torra — se crua ou torrada — e quanto à salga — se com ou sem sal. 


— Depende. Qual delas? 


— Torrada com sal, respondeu Stael, convicta.


— Oitenta e nove e noventa o quilo, respondeu o vendedor, sem saco. 


— Eita, tá o mesmo preço do supermercado, moço! E a crua sem sal? 


— Oitenta e nove e noventa o quilo também. 


— Ué!? E a torrada sem sal? 


— Oitenta e nove e noventa.


— Ah, moço, o senhor só pode estar de brincadeira. 


— A senhora vai levar? 


— Não, tá caro. 


— Então boa tarde. 


Enquanto o moço voltava para seu prato feito, Stael catou Chicão pela mão e saiu pisando duro. — Mas que palhaçada!


Nosso menino ficou encafifado. — Que foi, mãe?


— Porque diabos ele não me disse que o quilo da castanha era oitenta e nove e noventa? “Depende, qual delas?”, nã nã nã… Ai que raiva.


 Ao lado das garrafadas, impressionava a fartura da barraca dos grãos. Feijões de mais de dez tipos, arrozes variados, milho, mandioca, tinha de tudo e em muito. 

Lá dentro, ficou claro que se tratava de um empreendimento familiar. Todos de uma morenez singularíssima, de cabelos pretos escorridos, como o dos índios, grandes olhos redondos pretos e nariz de ponta grossa, por assim dizer.


Uma mocinha de bermuda, camiseta e sandálias de dedo atendia a quem se aproximava dos sacos de feijão. O senhor mais velho de calça jeans e camisa de botão na cor azul surrado tomava conta do caixa. E um jovem e simpático latagão vendia os queijos e farinhas. 


— Oi freguês!, saudou Stael, com sua expressão de feira. Ela adora isso. E abre um sorrisão ao pronunciar essas palavras. 


— Opa, freguesa, tudo bem? Quanto tempo!, respondeu. 


Aqui dê-se o crédito ao bom vendedor. Nunca fomos aquela barraca antes. Frequentamos a feira de São Sebastião, que é perto de casa, mas sempre vamos a uma barraca que fica lá do outro lado, perto dos restaurantes, onde de vez em quando como charque frita. 


Qualquer dia eu conto a história do dia em que me passei por espanhol ao tentar pedir um prato por lá. Mas preciso voltar à história. 


— Num é?!, divertiu-se Stael. Eu vou levar farinha.


— Claro, agora, freguesa! Qual delas a senhora vai querer? 


— Meu filho gosta daquela ali, amarela, né Francisco?, e virou-se pra Chicão em busca de confirmação. Ele, timidamente assentiu com a cabeça. 


— Ah, essa vem do Pará. Quanto a senhora vai querer? 


— Meio quilo. Moço, mas me diga uma coisa: qual a diferença dessa aqui, mais grossa, pra aquela ali, mais fina? 


— Ah moça… a diferença é que aquela ali é mais fina, né…


Eu juro que foi sem querer. Mas eu explodi numa gargalhada indecente. Stael me olhou feio. Chicão escondeu o rosto e disse: “pronto, começou…” 


Há uma memória afetiva coletiva em minha casa do dia em que a família estava toda acomodada num mesmo quarto de hotel. Era Ano Novo e eu, data máxima vênia, tomei todas as champanhas que achei por bem. Estávamos no estrangeiro, então todos naquele espírito de “aqui não é a nossa cultura”. Mas ali, alegrinho, com as luzes todas apagadas e a turma tentando dormir, eu fiz uma piada com um trocadilho em inglês. Eu ri alto, muito alto, mas tão alto que a gerência ligou lá no quarto. E quanto mais Stael tentava explicar que nada demais estava acontecendo, minha gargalhada se transformou numa estérica, longa e extraordinária crise de riso. Chicão e Bia começaram a rir não da piada, mas das minhas gargalhadas. E Stael tentava botar ordem na casa. — Não riam! Não riam! Quanto mais vocês rirem, mais ele vai gargalhar! Era como jogar lenha na fogueira. Aquilo durou pelo menos uns vinte minutos. Fiquei com a barriga doendo de tanto rir.  


Por isso que Chicão enrubesceu na feira. 


— Quer dizer, moço, que a farinha fina é mais fina que a grossa? 


Eu dizia isso galhofando, em meio à gargalhada. O pobre ficou sem graça. Mas manteve o humor.


— É, né, a única diferença é essa…


Levei um beliscão. — Para com isso!, protestou Stael. — Vou levar meio quilo, freguês, pode embrulhar. 


Pagamos. E voltei pra casa feliz, banhado na cordialidade que, apesar da crise recente, cala fundo à alma do brasileiro. 

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