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A CONSULTA

conto de 2007

Eram felizes, Josué e Lirinda. Havia quem aparasse: são muito felizes. Com ênfase no muito. Mas felicidade não é algo que se meça. E abundância de felicidade, no mais, existe para todo casal com menos de cinco anos de matrimônio. Era o caso. Josué e Lirinda namoraram três anos. Noivaram outros três. No sétimo, casaram. Quando trocaram alianças, ele somava 30 anos de idade. Ela contava três anos menos. A desgraça que se contará ocorreu dois anos e meio depois do casamento. - Uma lástima, uma lástima..., repetiam os fofoqueiros.

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A esposa sempre o tratou pelo prenome mesmo, Josué. Mas era tratada por Lindinha desde o noivado. Não tinham filhos. Passeavam de mãos dadas desde que trocaram o primeiro beijo, oito meses depois de começarem a namorar. Não se tem notícia de brigas. Riam juntos para os interlocutores, embora só ele falasse pelo casal. Aliás, sempre que alguém os conhecia, comentava da timidez da esposa: - Mas como fala pouco, não é?! Fora a mudez ocasional, Lirinda nunca, absolutamente nunca, gargalhava. Em nove anos e meio de convivência, Josué jamais presenciara ela sequer deixar escapar um riso pouco mais farto que o ririri de moçoila recatada. 

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Antes de prosseguir a história, é necessário uma parada para explicações.

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Filha única, Lindinha chegou do interior ainda moça, quase dezessete. Veio de Araripina. O pai dela, seu Aldenor, era um empresário conhecido no sertão do Araripe. Tinha uma mina de gesso. Exportava e tudo. Largou a vida interiorana e mudou para o Recife com a menina e com dona Gardênia, sua digníssima esposa, mulher gorda e bem-humorada. Abriu um comércio perto do porto, na rua da Praia, e passou a ganhar a vida vendendo perfume, comprado de um amigo da Receita Federal. – Bom negócio. Pago caro, mas vende que é uma beleza, vivia dizendo.

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Com mercadoria importada e tino para os negócios, menos de um ano depois de abrir a perfumaria, a que batizou de Le Parfum, seu Aldenor começou a atender a nata da grã-finagem pernambucana. Não ficou rico, mas sustentava a casa com a mesma dignidade com que vivia no sertão. Uma de suas melhores clientes era dona Lucila. – Doce, seu Aldenor, perfume tem que ser doce, ensinava-o. Dona Lucila era madame usineira. Isto é, esposa de usineiro. Tinha um único filho varão e outras três moças, todas mais jovens que o rapaz. As finanças da família estavam em franca decadência, mas os hábitos refinados teimavam em ignorar tal condição.

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Para o casamento de Lirinda e Josué, no entanto, a miséria perdulária da madame foi fundamental. Numa antevéspera de Natal, dona Lucila lembrou que receberia, dali a dois dias, a visita de uma tia velha vinda de Goiana, cidadezinha das mais antigas do estado, na Zona da Mata Norte, onde ficava uma das usinas. Passaria as festas junto com a família e precisava, como todos os outros, ter um presente debaixo da árvore. Foi quando tomou o filho pelo braço e rumou para a rua da Praia, tradicional ponto de comércio do Recife, onde parou em frente a Le Parfum.  

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– Boa tarde, seu Aldenor. Preciso de um perfume de mulher. Doce, viu, bem doce e forte, que é pra uma tia minha que está chegando do exterior, mentiu, nariz de pé. 

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- Olá, dona Lucila, mas que prazer! Eu tenho um novo que chegou na semana passada. Mas diga uma coisa, eu não quero me meter não, mas já que ela vem de fora não seria melhor a senhora dar alguma coisa da terra, hein? Desses aqui ela deve ter um bocado.

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E dona Lucila, desconversando: - Quem é essa jovem tão bonita que está no caixa? Era Lirinda. Josué, que estava meio entediado na entrada da loja, mostrou interesse. Veio na direção da moça e, embora olhando pra ela, falou com a velha: – Mamãe, qual o perfume que a senhora vai levar? 

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Foi quando seu Aldenor respondeu: - É minha filha. Dê boa tarde à cliente, cabrita. Ela é assim mesmo, quietinha. Mas cozinha que é uma beleza. A senhora não acredita na baba-de-moça que ela faz. E esse moço, é seu?, perguntou o velho, sorrindo, enquanto entregava uma prova do perfume.

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– Nossa Senhora, é delicioso!, sentenciou a grã-fina, depois de fungar sobre o frasco. É sim, o nome dele é Josué. Está trabalhando na usina, com o pai. Pode embrulhar pra presente, viu seu Aldenor? Acho que daqui a uns anos já vai poder assumir tudo pra deixar a gente aproveitar a velhice.

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E o latagão, matreiro: - Mãe, vamos aproveitar a deixa e encomendar baba-de-moça e um cento de nhá-benta. Pra servir na festa... Terminou de falar mal contendo o sorrriso e espiando com franco interesse na direção do caixa.

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Dona Lucila bem estranhou a providência, mas concordou e prometeu voltar no dia seguinte pra buscar os doces. Claro, quem o fez foi Josué. Daí pra frente, ele usou as artimanhas conhecidas para se aproximar da moça, trabalho facilitado com gosto pelo velho dono da perfumaria.

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Josué era um desses rapazes bonitos e abilolados. Era alto, de cabelos negros e lisos, voz vibrante e olhar profundo. Bom coração, péssima cabeça. Achava estranho o velho Aldenor mudar de assunto despudoradamente toda vez que perguntava por que ele decidiu vir para o Recife. Quando a questão era encaminhada à namorada, noiva e depois esposa, a resposta era invariavelmente um inquietante silêncio. 

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O que ninguém sabia, exceto o próprio Josué, é que Lirinda, ou melhor, Lindinha, era tão calada dentro quanto fora de casa. Chegaram ao altar, é bem verdade, mas o combustível da paixão dele durante o namoro e noivado fora muito mais a beleza exuberante que o caráter dócil e meigo. Passou noites, dias, meses a fio sonhando com a noite de núpcias. Não era mulherengo e há quem garanta que casou virgem. Mais de uma vez arrepiou-se inteiro lembrando da moçoila. 

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A família dele não fez muito gosto, mas também não impediu. Casaram-se. Desnecessário dizer que a noite de núpcias revelou-se uma meia decepção. Sim, meia. Lindinha nua era ainda mais enlouquecedoramente bela do que Josué jamais vislumbrara. Os olhos verdíssimos, o cabelo negro e liso caindo sobre os ombros, os seios fartos porém não exagerados, as pernas grossas, pele morena e macia, cintura angulada realçando o umbigo, não havia nada fora de lugar ou proporção. Ao vê-la, Josué caiu de joelhos e chorou, antes mesmo de arriscar um beijo. Amaram-se. Mas como Josué não era experiente no assunto, pouco se incomodou com o silêncio sepulcral em que o processo se desenrolou.

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Josué começou a ficar preocupado quando, lá pela metade do segundo ano de casamento, Lindinha começou a sangrar toda vez que ia ao banheiro para o último ato da digestão. Evitou o quanto pôde abordar o assunto diretamente. Notou, algo constrangido, um certo receio de sua esposa em livrar-se dos restos de alimentos metabolizados pelo corpo. Como se sofresse de uma prisão de ventre algo voluntária. Acabou sucumbindo à própria agonia com aquilo tudo. 

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– Tens hemorróida, vamos ao médico, disparou, sem olhá-la, meio estabanado, certo dia, antes de sair para o trabalho.

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- Não, não é nada. 

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- Como não? Está sangrando.

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- Deixa pra lá, não é nada.

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E assim foi por cinco meses, até que ele recorreu ao sogro. Esperou acabar o expediente e interpelou: – Seu Aldenor, é o seguinte... Contou o que vinha acontecendo, assim e assim. Estranhou a reação do velho. O lábio superior começou a pulular, como um tique. Ele suava em bicas. E até tremia. 

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- Meu filho, preste bem atenção... Fez uma pausa, baixou a cabeça, deu um muxoxo, levantou a cabeça, olhou nos olhos do genro, enxugou o suor da testa e revelou: - Lirinda é bundeira. 

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Josué, atônito: - Bundeira? 

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E o sogro: - É, bundeirinha da silva, infelizmente.

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- Mas que negócio é esse, que diabo é isso, bundeira?

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O velho já estava impaciente. – Ô Josué, tu és um asno mesmo. Se te servirem capim é capaz de cair de quatro e sair aos coices. Cuseira, homem, cuseira. Aldenor fazia-lhe um gesto com a mão, unindo o indicador e o polegar. Formava um círculo, com os outros três dedos esticados.

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- Seu Aldenor, o senhor me desculpe, mas eu não admito que falem assim de Lindinha, nem mesmo o senhor, que é pai dela. Eu quero lhe dizer que cuseira, com todo o respeito, é a puta que o pariu! 

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Foi o que bastou. O velho perfumeiro era, fisicamente, bem menor que Josué. Mas a moral tanto rebaixava este como inflava aquele. E o genro acabou por levar um tapão do sogro, com o qual caiu sentado no meio do Le Parfum.

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- Ouve, cretino. Eu saí de Araripina faz mais de 15 anos porque a besta da Lirinda inventou de ir lá dentro da mina, diz que estava me procurando. Ela tinha dezesseis anos, era uma flor desabrochando. Acabou estuprada pelos 35 mineiros que estavam lá dentro. Todos eles a curraram, entendeu, asno, curraram ela... curraram ela... O velho ia repetindo e chorando, ao mesmo tempo em que chacoalhava o genro pela camisa. Com a mão no rosto, chorava e seguia com a ladainha: - Curraram ela... curraram ela...

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E Josué, ainda mais atônito: - Curraram ela? Curraram ela? Ela quem? Lindinha? Curraram Lindinha? Ainda não tinha entendido direito, mas já começava a chorar, talvez por solidariedade ao velho.


– Foi, seu Aldenor? Pegaram Lindinha, foi? Meu Deus do céu, o que fizeram com minha mulher?! Josué já chorava em desespero. Urrava, puxava os próprios cabelos. Imaginava Lirinda sendo currada não por um, mas por 35 mineiros brancos de cal, um após o outro, numa seqüência medonha. Pior, em seu delírio pintava a mulher de hoje, não a menina de anos atrás.


- Eu vou lá, gritou para o velho. Vou lá e mato cada um desses cabras...

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- Deixa de ser idiota, Josué, falou Aldenor, já recobrando a razão. Você acha que eu já não fiz isso? Explodi os 35 dentro da mina. Tá tudo enterrado junto com o gesso que eu deixei lá, rapaz. Dei um dinheiro pro delegado e ele disse a todo mundo que foi acidente causado pelos desgraçados mesmo. Vai pra casa cuidar da tua mulher. Ela não quer ir ao médico pra não ter que te contar essa história. Vai lá, diz que tu já sabes de tudo e que não tem problema nenhum. 

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A caminho de casa, Josué era uma sombra magra caminhando pelo Recife, pensando no destino e tendo medo, como no poema de Augusto dos Anjos.


Chegou em casa pouco depois das oito da noite, trazendo um médico a tiracolo. 

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- Lirinda!, chamou. Era a primeira vez que a chamava de Lirinda desde que noivaram. – Esse aqui é o doutor Bernardo. É proctologista. Teu pai já me contou tudo, o doutor também está sabendo. Ele veio pra te examinar. 

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A mulher ficou branca e desmaiou ali mesmo, sem cerimônia. O médico a removeu para o quarto do casal, onde esperou pelo reestabelecimento da paciente, junto com Josué. Depois de 15 minutos, Lirinda acordou.

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- Pronto, pode começar doutor, consentiu Josué, seco. 

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- Mas Josué..., quis falar a esposa.

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- Basta. Quero um exame agora. Se você não me deu a verdade nesses anos todos, dê-me pelo menos um diagnóstico correto hoje. Vá doutor, pode começar.

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O constrangimento natural gerado pelo absurdo daquela situação desabrochou em algum instante de silêncio, depois do qual doutor Bernardo falou educadamente para Josué: - Se o senhor prefere assim, que seja. Mas o senhor vai ter que sair do quarto. 

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- Como é que é?

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- É. Não examino com o senhor aqui dentro. Não faria isso nem se estivéssemos no meu consultório.

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O pudor do proctologista surpreendeu de tal forma o marido, que ele saiu do quarto com o rabo entre as pernas. Fechou a porta e providenciou uma cadeira, onde sentou para velar a consulta como se faz com os defuntos. 

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Não há como garantir quanto tempo se passou até que Josué ouvisse o que pensou ser um gemido. Ou um sussurro. Reconheceu por trás dele a voz doce e meiga de sua Lirinda. E os ruídos iam ficando mais claros, mais altos, até que a esposa explodiu numa incontrolável e deliciosa gargalhada. Ria, ria gostosamente, como nunca rira em toda a sua vida. Em meio ao riso, gritava para o médico, que provavelmente realizava o toque clássico do ramo no qual atuava: - Mais, mais doutor, mais, mais. 

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De um salto, Josué apareceu no quarto, porta arrombada adentro, e viu a cena, grotesca a seus olhos. A mulher em gozo absoluto, durante o exame de doutor Bernardo. Um e outro acabaram estrangulados pelo marido, primeiro ele, em silencioso pânico, e depois ela, ainda em pleno em êxtase. Atônito, foi à cozinha, tomou a peixeira mais vistosa e afundou-a no meio do próprio peito. Tombou com semblante triste e horrorizado não de marido traído, mas de amante frustrado diante da diva.

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